sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Entender o Festival de Vilar de Mouros




Se quisermos tentar compreender aquilo que aconteceu em Vilar de Mouros no Verão de 1971, teremos que falar de muitas outras coisas além da música. Teremos que começar por falar de um homem, António Barge. Da sua paixão por uma aldeia e da sua extraordinária capacidade para realizar sonhos com outros homens e mulheres. Teremos que recuar a meados dos anos sessenta. Ao desenvolvimento de um festival de folclore luso-galaico, primeiro associado à romaria da terra e depois cada vez mais autónomo, eclético e ousado.
Teremos que falar de um sítio com gente aberta ao encontro entre diferentes formas de estar na vida, na sociedade e na cultura. Um pequeno oásis de liberdade. Em contraste gritante com a asfixia dominante. Onde, em 1968, Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Carlos Paredes e Luís Goes, tinham estado, a participar na quarta edição desse festival, já na altura designado por Festival de Vilar de Mouros.
O de 1971, seria o quinto. Passou a ser o primeiro. O início de uma outra coisa. Pela dimensão que assumiu, pelo cartaz com que se apresentou e pelo impacto na cultura e nas mentalidades daqueles anos setenta do século passado. No país e além fronteiras. Importa lembrar que estávamos ainda sob a ditadura que há mais de quatro décadas oprimia e afastava Portugal do mundo.
Um festival focado na cultura e na juventude. Apostado no desenvolvimento local e regional, pela vertente do turismo. Ambicioso ao ponto de colocar os Beatles como primeira hipótese de cabeça de cartaz. Acabou por ter em Elton John a grande vedeta internacional contratada. E também a famosa banda de Manfred Mann com a inovação técnica da música no momento, o sintetizador. Isto a par de obras, em estreia absoluta, dos portugueses Joly Braga Santos (música), Natália Correia e David Mourão-Ferreira (poema) com a cantata Dom Garcia e António Victorino d’Almeida com a Sinfonia Concertante. Outros ambientes musicais, a acentuarem o carácter inovador e eclético do festival. Em palco, muito do melhor que se fazia na altura, em diferentes géneros musicais. Depois de um primeiro fim de semana com música clássica, o segundo, o mais intenso e diversificado, apresentava aquilo que os organizadores designavam como “música moderna para a juventude” e o terceiro e último fim de semana com o “tropical” e popular Duo Ouro Negro no sábado e, finalmente, no domingo, uma noite de fado com Amália Rodrigues, a encerrar o festival.
Naquele verão de 1971, a aldeia de Vilar de Mouros, o concelho de Caminha e o Alto Minho, viveram um acontecimento cultural que mobilizou muitos milhares de pessoas. Na sua esmagadora maioria jovens. Portugueses e estrangeiros de muitas nacionalidades. Afluíram para viverem música e liberdade na pacata e idílica aldeia altominhota que os desafiava. Uma experiência marcante para quem participou. Na organização, como público ou no palco. Uma experiência extraordinária. Para a população de Vilar de Mouros que viveu por algumas semanas a transfiguração da sua terra numa espécie de centro de um mundo completamente diferente.
Só onze anos depois, em 1982, a experiência foi repetida. Novamente com êxito. Com maiores dificuldades organizativas e demasiados conflitos antes e durante o festival, mas com o mesmo ecletismo, sentido de inovação e espírito de liberdade. Um programa extraordinário. Com maior participação internacional do que o anterior. De onde acabaram por sobressair os irlandeses U2, praticamente em início de carreira.
É de crer que a experiência de 1982, com diversos conflitos de organização e de direcção artística mal resolvidos, tenha deixado relações difíceis entre muitas das pessoas envolvidas. O que nem sempre terá permitido valorizar devidamente o contributo muito especial do maestro António Victorino d’Almeida no desenvolvimento e na concretização dos sonhos do Dr. Barge. Talvez resida aí, pelo menos em parte, o desinteresse que se seguiu. Não encontrou continuidade o festival no seu cariz mais ousado que 71 e 82 apontaram como caminho próprio.
Contudo, três anos depois, em 1985, realiza-se um novo festival de âmbito luso-galaico, à semelhança dos anteriores a 71. Sendo completamente diferente e muito menos conhecido, vale a pena detalhar essa experiência pelo projecto abrangente que continha.
Na sua origem esteve Germano Ramalhosa, o criador do parque de campismo de Vilar de Mouros e da Casa da Anta em Lanhelas, que foi buscar a Lisboa um colaborador da Rádio Comercial na época, Mário Alves, para desenvolver o programa dessa edição. A iniciativa, apoiada activamente pelo presidente da junta de freguesia da altura, Armando Ranhada, e pelo então director do jornal “O Caminhense”, Guerreiro Cepa, viria a ser organizada formalmente pelo Centro de Instrução e Recreio de Vilar de Mouros e produzida por uma ampla equipa de voluntários locais e de outras regiões do país.
Na programação, destacaram-se as participações de Emílio Cao e dos grupos, Trovante, Fuxam os Ventos, Vai de Roda e Raízes. Sérgio Godinho, que se previa fechar com chave de ouro o programa, acabaria por não actuar em virtude do dilúvio que se abateu sobre o concelho de Caminha no último dia do festival. Com prejuízos financeiros significativos para os promotores (apesar da realização de um dia extra de programação na semana seguinte) ficaram, assim, goradas as esperanças de aposta continuada nos “Encontros de Música Popular de Vilar de Mouros”, um evento que incluía o festival, assinalava o Ano Europeu da Música e apostava num modelo diferente, mais direcionado para a valorização das culturas do Noroeste Peninsular e para o envolvimento das populações. Durante nove dias o programa, com pólos em Vilar de Mouros, Lanhelas  e Caminha, e em cuja montagem teve também papel destacado o actor e encenador portuense Victor Valente (então director da companhia “O Realejo”), apresentou além de música popular e tradicional, também teatro, cinema, artesanato, exposições e debates sobre temas relacionados com cultura e desenvolvimento, apontando assim para um formato de festival muito diferente dos anteriores.
Só por curiosidade, registe-se que foi a representação da peça de teatro "Com Papas e Bolos se Enganam os Tolos" do grupo “O Realejo”, que fazia parte deste programa, o último espectáculo realizado no Teatro Valadares de Caminha até á sua reabilitação, quase trinta anos depois.
O festival de 1985, que obviamente esteve longe do enorme impacto social e mediático dos de 1971 e 1982, teve no entanto também grande qualidade e deu mais uma vez visibilidade cultural e estimulo turístico ao concelho de Caminha e a Vilar de Mouros.
Novo hiato de onze anos. E só em 1996 se inicia o ciclo dos festivais patrocinados pelas cervejeiras, em formato idêntico ao de muitos outros que entretanto foram fazendo o seu caminho e conquistando os seus públicos. A marca Vilar de Mouros passou a estar dividida entre a memória de um tempo de genuína identidade, evidenciada nos dois momentos mais marcantes de 71 e 82, por um lado, e de um festival entre muitos outros, como foram os nove realizados ente 1996 e 2006.
Após 2006, outra interrupção de sete anos. Reapareceu, em 2014, envolto em novas polémicas e, embora com um programa de qualidade indiscutível, apresentou-se, por diversas circunstâncias, na versão mais enfraquecida de sempre.
Carlos da Torre

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