Se quisermos tentar compreender aquilo que aconteceu em Vilar de Mouros no Verão de 1971, teremos que falar de muitas outras coisas além da música. Teremos que começar por falar de um homem, António Barge. Da sua paixão por uma aldeia e da sua extraordinária capacidade para realizar sonhos com outros homens e mulheres. Teremos que recuar a meados dos anos sessenta. Ao desenvolvimento de um festival de folclore luso-galaico, primeiro associado à romaria da terra e depois cada vez mais autónomo, eclético e ousado.
Teremos que falar de um sítio com gente aberta ao encontro
entre diferentes formas de estar na vida, na sociedade e na cultura. Um pequeno
oásis de liberdade. Em contraste gritante com a asfixia dominante. Onde, em
1968, Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Carlos Paredes e Luís Goes,
tinham estado, a participar na quarta edição desse festival, já na altura
designado por Festival de Vilar de Mouros.
O de 1971, seria o quinto. Passou a ser o primeiro. O início
de uma outra coisa. Pela dimensão que assumiu, pelo cartaz com que se
apresentou e pelo impacto na cultura e nas mentalidades daqueles anos setenta
do século passado. No país e além fronteiras. Importa lembrar que estávamos
ainda sob a ditadura que há mais de quatro décadas oprimia e afastava Portugal
do mundo.
Um festival focado na cultura e na juventude. Apostado no
desenvolvimento local e regional, pela vertente do turismo. Ambicioso ao ponto
de colocar os Beatles como primeira hipótese de cabeça de cartaz. Acabou por
ter em Elton John a grande vedeta internacional contratada. E também a famosa
banda de Manfred Mann com a inovação técnica da música no momento, o
sintetizador. Isto a par de obras, em estreia absoluta, dos portugueses Joly Braga
Santos (música), Natália Correia e David Mourão-Ferreira (poema) com a
cantata Dom Garcia e António Victorino d’Almeida com a Sinfonia
Concertante. Outros ambientes musicais, a acentuarem o carácter inovador e
eclético do festival. Em palco, muito do melhor que se fazia na altura, em
diferentes géneros musicais. Depois de um primeiro fim de semana com música
clássica, o segundo, o mais intenso e diversificado, apresentava aquilo que os
organizadores designavam como “música moderna para a juventude” e o terceiro e
último fim de semana com o “tropical” e popular Duo Ouro Negro no sábado e,
finalmente, no domingo, uma noite de fado com Amália Rodrigues, a encerrar o
festival.
Naquele verão de 1971, a aldeia de Vilar de Mouros, o
concelho de Caminha e o Alto Minho, viveram um acontecimento cultural que
mobilizou muitos milhares de pessoas. Na sua esmagadora maioria jovens.
Portugueses e estrangeiros de muitas nacionalidades. Afluíram para viverem
música e liberdade na pacata e idílica aldeia altominhota que os desafiava. Uma
experiência marcante para quem participou. Na organização, como público ou no
palco. Uma experiência extraordinária. Para a população de Vilar de Mouros que
viveu por algumas semanas a transfiguração da sua terra numa espécie de centro
de um mundo completamente diferente.
Só onze anos depois, em 1982, a experiência foi repetida.
Novamente com êxito. Com maiores dificuldades organizativas e demasiados
conflitos antes e durante o festival, mas com o mesmo ecletismo, sentido de
inovação e espírito de liberdade. Um programa extraordinário. Com maior
participação internacional do que o anterior. De onde acabaram por sobressair
os irlandeses U2, praticamente em início de carreira.
É de crer que a experiência de 1982, com diversos conflitos
de organização e de direcção artística mal resolvidos, tenha deixado relações
difíceis entre muitas das pessoas envolvidas. O que nem sempre terá permitido
valorizar devidamente o contributo muito especial do maestro António Victorino
d’Almeida no desenvolvimento e na concretização dos sonhos do Dr. Barge. Talvez
resida aí, pelo menos em parte, o desinteresse que se seguiu. Não encontrou
continuidade o festival no seu cariz mais ousado que 71 e 82 apontaram como
caminho próprio.
Contudo, três anos depois, em 1985, realiza-se um novo
festival de âmbito luso-galaico, à semelhança dos anteriores a 71. Sendo
completamente diferente e muito menos conhecido, vale a pena detalhar essa
experiência pelo projecto abrangente que continha.
Na sua origem esteve Germano Ramalhosa, o criador do parque
de campismo de Vilar de Mouros e da Casa da Anta em Lanhelas, que foi buscar a
Lisboa um colaborador da Rádio Comercial na época, Mário Alves, para
desenvolver o programa dessa edição. A iniciativa, apoiada activamente pelo
presidente da junta de freguesia da altura, Armando Ranhada, e pelo então
director do jornal “O Caminhense”, Guerreiro Cepa, viria a ser organizada
formalmente pelo Centro de Instrução e Recreio de Vilar de Mouros e produzida
por uma ampla equipa de voluntários locais e de outras regiões do país.
Na programação, destacaram-se as participações de Emílio Cao
e dos grupos, Trovante, Fuxam os Ventos, Vai de Roda e Raízes. Sérgio Godinho,
que se previa fechar com chave de ouro o programa, acabaria por não actuar em
virtude do dilúvio que se abateu sobre o concelho de Caminha no último dia do
festival. Com prejuízos financeiros significativos para os promotores (apesar
da realização de um dia extra de programação na semana seguinte) ficaram,
assim, goradas as esperanças de aposta continuada nos “Encontros de Música
Popular de Vilar de Mouros”, um evento que incluía o festival, assinalava o Ano
Europeu da Música e apostava num modelo diferente, mais direcionado para a
valorização das culturas do Noroeste Peninsular e para o envolvimento das
populações. Durante nove dias o programa, com pólos em Vilar de Mouros,
Lanhelas e Caminha, e em cuja montagem teve também papel destacado o
actor e encenador portuense Victor Valente (então director da companhia “O
Realejo”), apresentou além de música popular e tradicional, também teatro,
cinema, artesanato, exposições e debates sobre temas relacionados com cultura e
desenvolvimento, apontando assim para um formato de festival muito diferente
dos anteriores.
Só por curiosidade, registe-se que foi a representação da
peça de teatro "Com Papas e Bolos se Enganam os Tolos" do
grupo “O Realejo”, que fazia parte deste programa, o último espectáculo
realizado no Teatro Valadares de Caminha até á sua reabilitação, quase trinta
anos depois.
O festival de 1985, que obviamente esteve longe do enorme
impacto social e mediático dos de 1971 e 1982, teve no entanto também grande
qualidade e deu mais uma vez visibilidade cultural e estimulo turístico ao
concelho de Caminha e a Vilar de Mouros.
Novo hiato de onze anos. E só em 1996 se inicia o ciclo dos
festivais patrocinados pelas cervejeiras, em formato idêntico ao de muitos
outros que entretanto foram fazendo o seu caminho e conquistando os seus
públicos. A marca Vilar de Mouros passou a estar dividida entre a memória de um
tempo de genuína identidade, evidenciada nos dois momentos mais marcantes de 71
e 82, por um lado, e de um festival entre muitos outros, como foram os nove
realizados ente 1996 e 2006.
Após 2006, outra interrupção de sete anos. Reapareceu, em
2014, envolto em novas polémicas e, embora com um programa de qualidade
indiscutível, apresentou-se, por diversas circunstâncias, na versão mais
enfraquecida de sempre.
Carlos da Torre
Sem comentários:
Enviar um comentário